Em entrevista a ÉPOCA, um dos mais conhecidos dissidentes cubanos critica a falta de postura crítica de Lula durante a visita à ilha
Ricardo Amaral, de Havana EPOCA
Oswaldo Payá Sardiñas, de 55 anos, é o dissidente cubano mais conhecido dentro e fora de seu país. Militante católico desde a juventude, esteve preso em campos de trabalhos forçados, entre 1969 e 1972. Há dez anos criou o Movimento Cristão de Liberação e, valendo-se de um dispositivo da Constituição, apresentou à Assembléia Nacional uma proposta de garantia de direitos individuais. O documento, chamado de Projeto Varela (nome de um religioso que participou da independência de Cuba) obteve 11 mil assinaturas de apoio, mas não prosperou no Parlamento.
Engenheiro especializado em equipamentos hospitalares, Payá ganhou o Prêmio Sakharov de Direitos Humanos do Parlamento Europeu em 2002. No ano seguinte, foi recebido pelo Papa João Paulo II numa audiência geral no Vaticano. A notoriedade e os contatos internacionais garantem a relativa liberdade de Payá na ilha. Ele faz oposição a partir de uma rede de contatos nas cidades e mantém distância dos grupos anticastristas radicados em Miami.
“Nosso movimento não é confessional, embora tenha inspiração cristã; somos antes de tudo pacíficos”, ele disse a ÉPOCA em sua casa no bairro de Almendares, em Havana. Na sala mobiliada com simplicidade, ele mantém uma imagem de Jesus Cristo, um cartaz do Prêmio Sakharov e uma peça de gesso enrolada com arame farpado, onde pendura botons com fotografias de dissidentes presos pelo regime. Durante a entrevista, exibiu um aparelho de escuta ambiental, que ele encontrou há um ano dentro da caixa de conexão de telefone, no quarto em que dorme com a esposa. “Esses espiões devem ter aprendido muito nos ouvindo”, ironizou.
ÉPOCA – Qual é o futuro de Cuba?
Oswaldo Payá Sardiñas – O futuro se decide agora. Estamos chegando ao fim de uma etapa que durou meio século. O povo de Cuba quer mudanças. O povo quer um caminho pacífico e o regime não oferece alternativas que não seja o mesmo poder excluindo o povo. O sistema oferece muitos benefícios, que eu reconheço, mas não a liberdade.
ÉPOCA – Que tipo de mudanças o senhor defende? Um retorno ao capitalismo?
Sardiñas – Rechaço o capitalismo selvagem, da mesma forma que rechaço essa ditadura implantada em Cuba em nome da Justiça. Não queremos escolher entre dois tipos de selvageria. Nem o estado nem o mercado podem ser mais livres que as pessoas. Veja que não queremos uma privatização desenfreada, como houve no Leste da Europa. Lá, os chefes do comunismo se transformaram nos grandes empresários.
ÉPOCA – Isso poderia ocorrer em Cuba se houvesse abertura?
Sardiñas – Aqui eles já vivem como ricos… Nosso problema é que os pobres são tão pobres que nem podem dizer que são pobres. A ditadura em nome da justiça suprime o direito de organizar sindicatos. Quando querem pedir justiça já não podem ter voz.
ÉPOCA – E quanto aos benefícios sociais que a revolução trouxe?
Sardiñas – Existe uma visão colonialista ou racista que diz: para esses cubanos que já tem saúde gratuita e educação gratuita, talvez algumas mudanças já sejam suficientes. Ora, queremos a liberdade e não aceitamos que ninguém relativize ou questione o nosso direito de ter direitos.
ÉPOCA – Como é lutar por mudanças em Cuba?
Sardiñas – Há um preço que é pago por milhares de pessoas. Eu mesmo tenho a vida controlada por agentes de segurança, as pessoas que me visitam são molestadas, minhas conversas estão sujeitas a escutas, tenho problemas no trabalho. Escolhemos o caminho pacífico. O caminho é dar voz ao povo, abrir espaços legais de participação cidadã. O povo de Cuba saberá construir uma ordem de liberdade econômica com grande dimensão social e humana.
ÉPOCA – O que achou do encontro do presidente Lula com Fidel?
Sardiñas – É escandaloso que um líder sindical, um líder de movimentos sociais, que se formou como político na defesa dos pobres, venha a um país onde há presos políticos e não mencione esse fato. Estão presos por defender seus direitos pacificamente, os mesmos direitos que reclamavam os brasileiros debaixo de sua ditadura. Ou ele pensa que existem ditaduras brandas? Li que Lula cumpriu 31 dias de prisão no Brasil. Meus irmãos estão condenados a penas de 23, 25, 28 anos de prisão. Depois de ver Fidel, Lula deveria ter ido visitar seu colega sindicalista Pedro Paulo Alvarenga, na prisão de Combinado Del Este.
ÉPOCA – As eleições deste domingo dão alguma esperança?
Sardiñas – É um insulto à inteligência que a imprensa estrangeira trate esse processo como eleições. As comissões que indicam os candidatos não são escolhidas pelo povo. É uma demonstração de que o regime não confia em sua força e tampouco confia no povo. É preciso fazer um referendo para que o povo decida como mudar o sistema eleitoral.
ÉPOCA – O que propõe a Lei de Reencontro Nacional, apresentada pelo seu movimento?
Sardiñas – Há cerca de 300 presos políticos em Cuba, 41 deles por estarem ligados ao Projeto Varela, a proposta de mudanças em favor de direitos que apresentamos há dez anos. Em dezembro passado, apresentamos à Assembléia Nacional uma petição para que votem uma Lei de Anistia e também pelo reencontro dos cubanos. Temos oito milhões vivendo fora do país. Entrar e sair não é um direito dos cubanos. Não há liberdade nem de viajar dentro de Cuba. Há discriminação de cubanos em seu próprio país. São proibidos de entrar nos hotéis, de abrir seu próprio negócio. É uma coisa cínica que os estrangeiros possam abrir negócios no país e os cubanos, não.
ÉPOCA – Como explica o fato de estar criticando o governo e não estar preso?
Sardiñas – Parece que Fidel resolveu tratar meu caso como questão de estado, pelo menos é o que se diz. Mas a pergunta a ser feita é outra: por que estão presos meus irmãos que apoiaram o Projeto Varela?